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… do PAPA-RUIVACOS…


2 de Julho de 2010. São 07h00 da manhã. O dia despertou envolvido por uma neblina espessa, quase impenetrável ao meu olhar. Acabei de chegar às margens da Vala Real, também conhecida por Vala da Cana, cujo leito com uma largura de cerca de 20 metros, foi escavado com esforço braçal, com dureza física e mental, lacrimejante, em meados do século XX, pelos gandareses, com recurso a enxadas e pás. As suas areias soltas e albas, foram transportadas em padiolas de madeira e depositadas em novas margens, sobrelevadas, rectilíneas, quais muralhas quase inexpugnáveis ao assalto das copiosas águas invernais e primaveris, que naquela época, caiam e serpenteavam, ao deus-dará, por entre os espaços interdunares, por onde bem lhes apeteciam. Sem cabresto nem freio que as segurassem, frequentemente originavam cheias cíclicas, que embora enriquecessem os terrenos marginais, por vezes, também se aproximavam perigosamente das habitações dos homens, lambendo-lhes os muros e paredes de adobe, chegando mesmo, em certos anos, a penetrar no interior do seu refúgio.

De mochila às costas e tripé ao ombro, percorro um caminho com cerca de 150 metros de comprimento, formado por uma mistura de areia, folhas, raízes e gramíneas. O meu destino é o abrigo construído pelo Luís Rocha, há algum tempo, na margem esquerda da vala, com o objectivo de fotografar o guarda-rios (Alcedo atthis) mais conhecido entre os mais velhos, e entre alguns de nós, por papa-ruivacos.

Instalo-me o mais confortavelmente possível, num assento improvisado com folhas, e coberto com um pedaço de plástico, para manter o rabo seco. À minha volta, sobrepondo-se ao gotejar do nevoeiro que vai escorrendo por entre os ramos e as folhas das árvores, até tocar o chão macio, vindo do interior da bruma, sons que reconheço como sendo da água corrente, do tordo-músico, dos estorninhos, chapins, galinhas-d´água e rouxinóis-bravos, invadem a atmosfera que me envolve.

Há quatro dias que repito esta rotina, e embora já tenha captado várias fotografias da espécie que pretendo, ainda nenhuma me agrada verdadeiramente. Enquanto aguardo pela aparição desta ave de pequeno porte, um odor aromático a hortelã envolve o ambiente que me rodeia e, à medida que a bruma se vai dissipando, os contornos das árvores, dos caniços, e dos lírios-amarelos-dos-pântanos, ainda mal definidos, vão-se mostrando timidamente, enquanto, não muito longe, para lá da outra margem, o som ruidoso, áspero, de uma garça-real, ressoa através do ar húmido.

Já passou cerca de uma hora, e até ao momento, não existe qualquer sinal do guarda-rios. Os dedos dos meus pés e a ponta do nariz, começam a acusar os efeitos da humidade, fresca, penetrando nos meus ossos e tendões, enquanto as costas ligeiramente arqueadas, já começam a doer num queixume silencioso, devido à postura em que me encontro. Quase a entrar em dormência, sou despertado por um assobio curto e agudo, familiar, oriundo de montante. É o papa-ruivacos, que se aproxima rapidamente com o seu voo rectilíneo, rasante, sobre a superfície da água, e que aterra no poiso enquadrado a cerca de três metros de distância do pequeno abrigo rudimentar onde me escondo. Nos primeiros momentos, não me mexo, nem sequer pestanejo, e contenho a respiração, receando que algum movimento mais incauto, espante a ave e deite tudo a perder. Em frente a mim, está uma bela fêmea, de cabeça grande e bico comprido, com a mandibula laranja-avermelhada, exibindo umas das plumagens mais sublimes que se podem observar entre as nossas aves. O seu dorso e as suas asas possuem tons predominantemente azuis, que conforme a incidência da luz, podem variar entre o azul-celeste ou o azul-cobalto, enquanto as suas partes inferiores são dominadas por um laranja-acastanhado. Imóvel, empoleirada com as suas curtas patas no ramo enterrado previamente pelo Luís, no leito da vala, não tarda muito tempo que comece a perscrutar atentamente, com os seus olhos penetrantes, as águas cristalinas, de fundo arenoso, e com plantas aquáticas submersas, esparsas, dançando ao sabor da corrente, o que lhe facilita o seu rastreio em procura de uma presa que lhe sirva de refeição. Apercebo-me que não revela qualquer desconfiança em relação à minha presença, pois já deve estar habituada ao brilho da lente que se esconde naquele amontoado de ramos e folhas que margina o curso de água. De repente, mergulha de cabeça, dando origem a salpicos de água, e por alguns instantes deixo de a ver. Breves segundos depois, emerge e regressa ao poiso. Mas não vem sozinha. No seu longo bico, preso entre as mandíbulas, contorcendo-se para se libertar do aperto, um girino, descuidado, debate-se em vão. Agilmente, a pequena ave, bate com a sua presa repetidamente no ramo, e termina rapidamente com o sofrimento do jovem anfíbio, engolindo-o de seguida, pela cabeça. Absorvido por esta cena, não cheguei a premir o botão do obturador da máquina fotográfica. Apenas interiorizei, com um brilho nos olhos, o drama que se desenrolou à minha frente.

Mas outras oportunidades me foram oferecidas. Durante alguns minutos, o papa-ruivacos mergulhou diversas vezes, umas sem sucesso, outras com êxito, pescando várias presas, entre as quais, gambúzias e camarões-do-rio (as nossas cabritas). No último mergulho, após cumprir o ritual da matança, desapareceu de vez, de novo em direcção a montante, mas desta vez, levou consigo um pequeno peixe, talvez para alimentar uma das suas crias, que aninhadas num buraco, provavelmente escavado na mota da vala, aguardavam que a sua fome fosse saciada.

Quando desmontei o equipamento, já o astro-rei iluminava pontualmente o leito do curso de água, e nessas clareiras luminosas, algumas libelinhas, sobretudo gaiteiros-ocidentais e, gaiteiros-negros, com o seu voo grácil e ondulante, debatiam-se por um lugar ao sol e pelas fêmeas, mais discretas, na tentativa de perpetuar a sua espécie.

João Petronilho




A MORTE DE UMA IMPERATRIZ

 

No fundo arenoso de um charco de água doce, coberto com vegetação aquática e ramos de arbustos submersos, Impy, uma ninfa de libélula-imperador, sentia sensações nunca outrora experienciadas. Ao longo da sua vida, passada debaixo de água, o seu corpo sofrera várias mudas, o que lhe permitira crescer e atingir o auge do estádio de vida em que se encontrava. Mas desta vez, era diferente, e sem saber o porquê, sentia-se impelida pelo desejo irresistível de caminhar com as suas seis patas de inseto, até a um caule de um bunho ali enraizado. Ao tocar-lhe com as suas pequenas antenas, começou lentamente a trepar até à superfície, que tantas vezes, ao longo da sua vida de ninfa, enxergara lá no cimo, distante, misteriosa, cheia de silhuetas desconhecidas, enigmáticas. Ao aproximar-se da linha que separa os dois mundos, onde a água se encontra com o ar, e o beija, deteve-se momentaneamente, ainda insegura, indecisa, e por breves instantes, recordou a sua infância, quase sempre atribulada, desde que, uns meses antes, eclodira de um ovo posto por uma mãe que nunca conhecera. Durante esse período de vida, de crescimento, repleto de perigos, inúmeras foram as vezes que, ora mantendo-se imóvel, camuflada, ora graças ao seu sistema de propulsão rápida originada pelo bombear de água através do seu ânus, tinha conseguido escapar à voracidade de várias espécies de peixes, anfíbios, aves, escorpiões-d’água e outros insetos aquáticos carnívoros, inclusivamente, de indivíduos da sua própria espécie de maiores dimensões. Mas também se recordava das larvas de mosquitos, e dos girinos, que habilmente caçara com a ajuda do seu lábio extensível, desdobrável, armado de pinças mortais. E como eram deliciosas essas presas! Mas agora as coisas estavam a mudar!   

A primeira parte do seu corpo a assolar à superfície foram os seus grandes olhos, e logo sentiu, pela primeira vez, a carícia morna provocada por uma leve aragem que soprava de leste. Continuou a trepar, fortemente agarrada ao caule da planta, e sentiu que o seu corpo, habituado a andejar dentro de água, estava agora mais pesado, embora desconhecesse o motivo. E também sem saber porquê, ao fim de algumas dezenas de centímetros, imobilizou-se, decidindo que aquele era o ponto exato onde deveria permanecer. Talvez porque a superfície do charco já estivesse suficientemente distante, para que, a fase seguinte do seu desenvolvimento ocorresse sem percalços. Ou, talvez não. Não tinha a certeza!

Ainda não passara muito tempo desde que emergira da água, quando sentiu a sua pele a romper-se, permitindo que o seu novo corpo fosse iluminado pela primeira vez, diretamente pela luz do sol. E sentia, que no seu tórax, estavam implantadas umas membranas enroladas, ainda moles, que a pouco e pouco se iam expandindo, tal como ia acontecendo com o seu abdómen e outras partes do seu novo ser. Eram os seus dois pares de asas. Ainda não sabia para que serviam, mas em breve, descobriria.

A meio da manhã, ensolarada, experimentou agitar esses seus apêndices alados, já endurecidos. Funcionavam! Então num momento impulsivo, soltou-se do caule do bunho e lançou-se no ar, voando sem um rumo traçado. Para trás, deixava a sua exúvia, translúcida, oca, único testemunho da sua vida aquática. Uma nova existência, completamente diferente da anterior, esperava por ela.

Voar era uma sensação fantástica. Nos primeiros tempos, não fora fácil dominar as técnicas que lhe permitiam suster-se no ar. Mas passado todo esse período de aprendizagem, era com um enorme prazer que voava velozmente ou pairava sobre o mesmo lugar, no seu novo mundo. Até conseguia, sempre que necessário, recuar ou voar para os lados! Os seus grandes olhos, compostos por milhares de omatídeos, permitiam-lhe ter uma excelente visão de 360ºgraus, o que lhe era bastante útil para caçar insetos em voo ou detetar predadores. E foi durante um desses voos que um grande e belo macho, com o seu tórax esverdeado e o seu abdómen azul celestial pintado com manchas dorsais negras, que patrulhava o seu território, localizado ao longo da margem de uma lagoa, a encontrara. Foi o primeiro de muitos encontros, com este, e outros machos, namoros breves, de curta duração, como era prática na sua espécie.

Dois meses haviam passado desde que Impy se libertara do seu corpo de ninfa. Ao longo desse período repartira a sua vida pela caça, pelo romance, pela fuga aos predadores, e, também, pelo descanso nos ramos e plantas que marginavam os lençóis de água que conhecera. Nestes poisos, que em dias de vento forte, serviam como porto de abrigo, entretinha-se a observar com curiosidade notonectas a remar sob a superfície da água, alfaiates a deslizar prazenteiramente sobre a mesma ou um ou outro rato-d’água a nadar ao longo das margens.

Ao longo da sua curta vida, já percorrera muitos quilómetros, voando incessantemente, na procura de lugares favoráveis à postura dos seus ovos. Contudo, a fadiga começava a apoderar-se do seu corpo. As suas asas transparentes e rendilhadas com nervuras, outrora belas e fortes, acusavam o desgaste de uma vida intensa, apresentando sinais de deterioração irreparáveis.

Apesar disso, ainda tivera energia para um último voo, e algures, num espaço interdunar, não muito longe do lugar onde nascera, encontrara um pequeno charco com vegetação aquática em abundância, um local perfeito para efetuar um derradeiro esforço para perpetuar a sua espécie.

Estava um dia de céu azul, límpido, de temperatura amena e sem vento. Bem alto, ouviam-se os chamamentos de um casal de águias-cobreiras, que se elevava no ar ao sabor das correntes térmicas, enquanto, num plano mais baixo, uma cotovia-dos-bosques, com o seu voo ondulante, entoava o seu canto agradável, num ritmo variável.

Próximo da margem nascente do charco, uma felosa-do-mato, agitando a sua cauda nervosamente, espreitava com um misto de curiosidade e inquietação, uma jovem raposa a saciar a sede, levando a que o coaxar das rãs-verdes, até aquele momento, ruidosamente omnipresente, se silenciasse, permitindo assim, ouvir um ou outro roçar de asas de várias libélulas-escarlate, que também ali procuravam um local para ovipositar.

Impy, fizera vários voos de reconhecimento sobre o charco, acerca de meio metro de altitude, acompanhada pelo reflexo do seu corpo sobre o espelho de água. Na sua espécie os machos não escoltavam as fêmeas, não as vigiavam durante a postura dos ovos. Estava sozinha, e praticamente exausta. Mas o desígnio para que nascera, impelia-a a continuar a mergulhar o seu ovipositor, uma e outra vez, sob a superfície da água, nos caules das plantas. E até esse dia, durante esses instantes em que se encontrava mais vulnerável, tinha escapado, algumas vezes, por um triz, às investidas predatórias das rãs-verdes, que dissimuladas no tapete de plantas aquáticas, imóveis, aguardavam expectantes, um descuido, uma desatenção, por parte dos insetos alados. Contudo, sem que o soubesse, neste charco alguns destes anfíbios tinham um comportamento diferente. Tinham aprendido a trepar para os ramos de um salgueiro-anão, localizado na margem poente do charco, sobranceiro ao espaço aéreo próximo!

Aconteceu tudo muito rápido. Impy, tinha acabado de por um ovo, e no momento em que se elevava no ar, apenas se deu conta de observar um vulto a voar na sua direção. Não teve tempo de reagir. Sentiu um forte embate e uma boca enorme, húmida, fechar-se sobre a sua cabeça e o seu tórax. Sentiu uma pressão letal esmagar-lhe o corpo enquanto era arrastada para debaixo de água, durante um tempo que lhe pareceu uma eternidade. Ainda estava em estado de choque, quando a rã aflorou à superfície, e se dirigiu a uma das margens, onde, com dificuldade a tentou engolir. Impy debateu-se com todas a suas forças e num momento de menor aperto mandibular, conseguiu libertar-se do “monstro” que a atacara. Fez várias tentativas para levantar voo, mas não foi capaz. Era demasiado tarde. As suas asas já não funcionavam, não passavam de um mero e inútil adorno. A escassos centímetros, o anfíbio verde, observava o corpo enfraquecido da libélula, já disforme, e fez uma nova investida para o abocanhar. Após várias tentativas, conseguiu orientá-lo de forma a poder engoli-lo ao comprido, já sem a cabeça, que durante esta luta desigual, se separara do corpo e flutuava agora na superfície do charco. Impy sentiu a sua vida esvair-se, e pouco depois deixou de reagir.  Já não pertencia ao mundo dos vivos …

Cerca de três semanas após a morte da bela imperatriz, ninfas minúsculas eclodiam dos ovos da última postura, prontas a explorar vorazmente o que o novo mundo lhes tinha para oferecer. Sem o saberem, eram filhas de Impy, e uma nova geração de libélulas-imperador, a maior das libélulas europeias.

 

Mira, últimos dias de Verão de 2021

 

João Petronilho





 

… DE TI …

 

Hoje inebriei-me! Não com álcool ou outras drogas!

Inebriei-me de ti!

Inebriei-me com o relevo ondulante das tuas dunas de areias níveas ou acinzentadas, por vezes, mescladas, umas ripadas, outras encabeladas, e cujos grãos roliços, enquanto progredia no terreno, deslizavam sob a pressão dos meus pés descalços.

Inebriei-me com as tuas plantas floridas de amarelo, branco, rosa e outras cores, e com os aromas suaves exalados por estas e pela evaporação emanada do teu charco temporário ali próximo, repleto de vidas fervilhantes, umas de existência curta, apressada, outras, de cadência mais lenta.

Inebriei-me por um dos teus caminhos coberto com um manto de musgo espesso e aveludado, fofo ao toque, pontilhado coloridamente com baldélias, e ladeado de salgueirinhas e algumas lobélias.

Inebriei-me com a dança balançada dos teus caniços, dos teus salgueiros-anões, e do tremelicar das folhas dos teus pequenos choupos-negros, originada pela brisa ligeira e fresca que soprava de oeste.

Inebriei-me com o voo agitado de milhares das tuas libélulas douradas que se elevavam no ar ao pressentirem o meu avanço, para pouco depois aterrarem, quase sempre, no mesmo poiso onde anteriormente repousavam descontraidamente.

Inebriei-me com o canto ritmado e repetitivo de duas das tuas codornizes, machos numa disputa territorial marcada pelo compasso canoro.

Inebriei-me com o coaxar orquestral das tuas relas-ibéricas, belo e ensurdecedor, e do grasnar longínquo de um pequeno bando de gralhas-pretas rumo ao seu local habitual de pernoita.

Inebriei-me com as cores azuláceas e alaranjadas do teu céu após o ocaso, recortado por nuvens que lentamente deslizavam em direcção ao sol nascente, e pelas formas negras das tuas árvores no horizonte.

Inebriei-me com os teus grandes besouros de élitros listrados a esvoaçar, atabalhoadamente, em redor das copas das poucas árvores ali existentes, atraindo a atenção de dois dos teus gaios, astutos, oportunistas, que persistente e agilmente, saltitavam de ramo em ramo, na tentativa de debicar uma última refeição, antes de mais uma noite de sono inconstante.

Inebriei-me com os piscar das luzes de alguns dos teus pirilampos no seu voo errante e expectante em busca das fêmeas, também elas exibindo, esperançosamente, as suas lanternas luminosas.

Inebriei-me antes de iniciar o regresso a casa, já lusco-fusco, ao ouvir entoar o canto singular dos teus noitibós-cinzentos, e ao observar de perto os seus voos de caça e as suas exibições rituais de acasalamento com um bater de asas característico … por vezes, peneirando a poucos metros de mim, fixando-me intrigadamente, com os seus grandes olhos.

Inebriei-me com a silhueta de uma das tuas jovens raposas a atravessar silenciosamente o trilho de areia poeirenta, de orelhas espetadas, escutando os sons emitidos pelos outros habitantes da Terra, ora de nariz erguido, ora curvado, farejando os diferentes odores em seu redor.

Inebriei-me … inebriei-me …inebriei-me … sem perder o Norte nem os sentidos! E se no teu leito me acamasse, sobre um colchão de caruma, embrandecido com os teus líquenes e musgos, e adormecesse dobrado em posição fetal, aconchegado sob o teu céu cheio de astros cintilantes, por certo, também inebriaria as tuas frenéticas e sequiosas fêmeas de mosquitos com o meu sangue pejado destes momentos … de ti!

 

Areia Rasa, Dunas de Mira, primeiro dia de Verão de 2021.

 

João Petronilho

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